É notícia recente que os maiores frigoríficos nacionais, dentre eles a JBS Friboi, vendiam aos seus clientes carne estragada, carne contaminada, carne com excesso de produtos cancerígenos, e subornava, sistematicamente, fiscais sanitários para passarem (incólumes) pela fiscalização.
A operação deflagrada pela Polícia Federal (Carne Fraca) contou com mais de 1.000 agentes envolvidos. A primeira coisa que se infere do ocorrido é que, mesmo após a Lava Jato (com todas as críticas de violações constitucionais patrocinadas pelo MPF e o Judiciário, especificamente o Magistrado Sérgio Moro) ainda não incutiu, em nossos empresários e políticos corruptos o “medo de ser preso” como propulsor de uma nova forma de atuação.
Talvez, então, esse seja o momento de lembrarmos as palavras de Maquiavel: “os homens sofrem mais com a perda do patrimônio, do que com a morte de um familiar”. Noutras palavras, esse é o momento no qual o Judiciário Cível deve ser chamado à responsabilidade e tratar o assunto Dano Moral (seja o nome que se dê ao Instituto: Dano Extrapatrimonial – em Portugal o dano moral recebe essa classificação, que, cientificamente, nos parece mais adequada –, Penalidade Cível por conduta Inapropriada, dentre outros) e parar com a velha e ultrapassada cantilena do enriquecimento sem causa.
Com efeito, o único enriquecimento sem causa a ocorrer hoje é o dos próprios violadores, dos maus empresários. Não é difícil inferir que o custo é menor de produzir-se um produto de má qualidade, eventualmente sofrer uma (ou várias) ações judiciais é muito menor que produzir um produto que atenda às normas de higiene. Isso vale, obviamente, para qualquer espécie de serviço.
O grande problema com isso é que, sob o fantasma do enriquecimento sem causa – como se nosso Judiciário fosse pródigo em conceder indenizações milionárias – empresas que trabalham seriamente e tentam vender um produto de qualidade sofrem, com o aval da Justiça, uma espécie de “dumping”, de concorrência desleal. Em verdade, foi o que aconteceu com milhares de pequenos produtores rurais que são esmagados pela JBS e outras gigantes do setor alimentício.
Apenas com seu gigantismo, ainda que não praticassem fraude alguma, era extremamente difícil aos pequenos produtores competirem com esses gigantes do Agronegócio (da mesma forma que ao criar a linha de montagem a Ford esmagou dezenas de pequenos produtores de carros no início do Século XX). Francamente, a concorrência leal era dificílima, mas, ok, faz parte do jogo do capitalismo-liberalismo econômico; agora, por seu turno, a concorrência desleal tornou impossível ao pequeno produtor competir com esses gigantes, que além de contarem com um imenso poderio financeiro (alavancado via BNDS) lhes permitia, também, vender produtos estragados/tóxicos/inapropriados para o consumo podendo subornar fiscais com regularidade. Obviamente que esses pequenos produtores quebraram, e isso aconteceu, infelizmente – ainda que de forma indireta – por culpa do Poder Judiciário.
Já passou da hora de acabarmos com a cantilena do enriquecimento sem causa. Em primeiro lugar devemos atentar que há sim, contrario senso do que é pregado, base legal para sejam fixadas indenizações em altíssimos valores. Vejamos: o artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor, por exemplo, prevê que o consumidor cobrado em importância indevida deverá ser ressarcido no dobro do que fora cobrado. (E temos, por exemplo, no escritório, um caso concreto – 0134758-58.2010.8.26.0100 – o no qual o Banco Santander fora condenado a mais de R$ 1.000.000,00 a este título). Indubitavelmente trata-se de norma que fixa a condenação em razão da existência de um ilícito civil, e cria automaticamente, um “dano moral” que deve ser fixado no mesmo parâmetro do dano material. Justamente por essa razão o Poder Judiciário não deve ficar refém de uma Doutrina totalmente envelhecida e que apenas e tão-somente tem o condão de perpetuar este estado de coisas.
Marco Antonio Ibrahim em artigo intitulado “Direito ao Respeito” já salientava que:
“(…) Infelizmente, a revelha cantilena do enriquecimento sem causa tem justificado de parte de alguns Tribunais brasileiros, tendência em fixar tais indenizações em patamares irrisórios, verificando-se, em certos casos, até uma certa uniformidade, como pode revelar a mais singela das amostragens. Com isso, resta fragilizado o aspecto punitivo das indenizações e seu correlato caráter educativo e desestimulante da prática de novos ilícitos.
Pois esta exegese conservadora do Princípio da Razoabilidade das indenizações por danos morais é um prêmio aos maus prestadores de serviços, públicos e privados. Não se trata, bem de ver, de privilegiar o exagero, o arbítrio absoluto, nem se prega a ruína financeira dos condenados. O que se reclama é uma correção do desvio de perspectiva dos que, à guisa de impedir o enriquecimento sem causa do lesado, sem perceber, admitem um enriquecimento indireto do causador do dano. E, aqui, a situação mais óbvia (e atual) é aquela que envolve certas concessionárias de serviços públicos que cobram tarifas escorchantes e prestam serviços de precário funcionamento.
A questão é atuarial. Por que investir em qualidade e obrigar-se aos custos de fornecimento de bons serviços se eventuais indenizações não chegam a incomodar? A indenização de cinco ou dez passageiros lesionados em um acidente de ônibus tem custo muito menor do que o de um veículo novo e um motorista treinado e bem pago…
A verdade é que a timidez do juiz ao arbitrar essas indenizações em alguns poucos salários mínimos, resulta em mal muito maior que o fantasma do enriquecimento sem causa do lesado, pois recrudesce o sentimento de impunidade e investe contra a força transformadora do Direito. A efetividade do processo judicial implica, fundamentalmente na utilidade e adequação de seus resultados.(…)”
Esse artigo já tem quase duas décadas e nada mudou no que diz respeito às indenizações por danos morais, ou, por outra, mudou para pior. Hoje está em voga, mesmo para casos que devemos considerar, particularmente, mais graves, a fixação de indenizações em valores irrisórios, algo da ordem de R$ 5.000,00. Falemos de três deles:
Caso número 1) No processo número 1033127-78.2015.8.26.0100, uma atendente da Operadora de Telefonia Móvel Claro ofendeu, com palavras de baixíssimo calão, uma cliente nossa e, em que pese a indenização requerida tenha sido requerida em valor bem maior, o Magistrado ao Julgar a causa fixou a indenização em R$ 5.000,00 em favor da consumidora. Caso número 2) no processo número 1038178-70.2015.8.26.0100 a SERASA Experian recusou-se a cumprir uma ordem judicial a qual determinava excluir dois apontamentos do seus sistema. Isso gerou um processo autônomo de indenização por dano moral e – com as vênias a quem não pensa dessa forma – mas poucas coisas são tão atentatórias ao Direito quanto o não cumprimento de uma ordem judicial. Pois bem, para esse caso a indenização fora fixada em R$ 5.000,00. Caso número 3) A JBS – Friboi no estado do Mato Grosso, fora condenada em R$ 10.000,00 por praticar cárcere privado e impedir, fisicamente, através de seus prepostos, uma funcionária sua de sair para realizar o exame do ENEM[7].
Falemos um pouco deste parâmetro indenizatório como fatos inibidor da propositura de processos. Com efeito, a fixação das indenizações em quantias da ordem de R$ 5.000,00 não tem o condão, em hipótese alguma, de induzir a essas empresas a cultura do desestímulo, ao contrário, é um convite para que lesem seus clientes.
O Juiz, como todos os demais Operadores do Direito deve ser prático. Então, ab initio, podemos verificar como uma indenização dessa ordem estimula condutas temerárias por parte das empresas. Imagine que um Advogado ao fazer uma ação dessas cobre 20% do cliente (quase que a regra geral na Advocacia Cível) e seja fixado pelo Magistrado mais 20% de verbas de sucumbência (algo muito longe de ser uma regra geral na Advocacia Cível). Pois bem, estamos falando então de R$ 2.000,00 de honorários, os quais irão demorar (numa previsão muito otimista) 18 meses para serem recebidos. Pois bem, esse Advogado hipotético recebeu R$ 2.000,00 para o processo.
Contudo, um Advogado para fazer ações com certa qualidade profissional deve, necessariamente, ter em seu escritório, Livros Jurídicos. Quanto custam os livros ligados ao tema “Danos Morais”: a coleção da Revista dos Tribunais (Teses Fundamentais sobre Danos Morais), obra que reputo obrigatória, custa algo em torno de R$ 2.500,00. O “Tratado de Responsabilidade Civil” de Rui Stoco, outra obra obrigatória para quem quer advogar no tema, custa algo como R$ 586,00. Podemos citar umas 10 obras de qualidade, penso que obrigatórias, para quem quer advogar com eficiência na área, que, custando na média R$ 70,00 cada, obrigariam ao Advogado que queira dedicar-se ao tema Danos Morais gastar, apenas com livros, algo em torno de R$ 3.786,00.
Noutras palavras, ele terá que fazer (em nome de seus clientes) e ser vencedor, em dois processos por danos morais apenas para compor sua biblioteca (isto é claro, se deixar de fazer outras coisas como: alimentar-se, pagar aluguel, assinar sites jurídicos imprescindíveis como a AASP, pagar a anuidade da OAB, pagar os vários impostos que nos são cobrados, comprar livros também de outras áreas, por crédito – ou pagar a conta – do seu celular, comprar computador (es)). Noutras palavras: a conta não fecha e, salvo alguém absolutamente apaixonado pelo tema, como o autor deste texto (que tem em seu escritório quase tudo o que é escrito sobre o assunto), o investimento para a prestação de um trabalho de qualidade ligado ao tema “Dano Moral” é maior do que o retorno financeiro com honorários contratuais e sucumbenciais. Isso nos leva ao pior cenário possível: ou os Advogados declinam (como tem acontecido cada vez mais) de fazer esse tipo de processo, ou, por outra, a limitação material-financeira acaba gerando, em grande parte dos casos, a apresentação de petições inadequadas à plena defesa dos interesses constituídos. Ponto para as empresas que, ainda que com a colaboração involuntária do Judiciário na fixação de econômicas indenizações, conseguirão lucrar mais ainda com a péssima prestação de serviços aos seus clientes.
O Jurista Felippe Mendonça fez um comentário no Facebook que achei interessante e reproduzo abaixo: “Uma única indenização alta para um consumidor que tenha passado mal por comer uma carne estragada teria sido suficiente para isso nunca acontecer… Nem com carnes, nem com nada… Mas nossos juízes estão realmente se importando em defender empresas nessas situações contra esses indivíduos nefastos que querem indenizações”. Concordo parcialmente com esse comentário. Obviamente que indenizações elevadas têm o condão de estimular uma conduta respeitosa da empresa para com seus clientes. Contudo, o Judiciário, em casos isolados concede uma ou outra indenização mais generosa, que, isolada, ou num minúsculo subconjunto não terá o condão de alterar a gravíssima realidade que vivemos hoje.
No livro “Direito & Democracia – Ordem Constitucional X Neoliberalismo” Paulo Antonio Papini ao analisar um caso isolado no qual o Juizado Especial Cível de São Paulo condenou empresa telefônica, que assediara sua cliente, no limite máximo de 40 salários-mínimos de indenização, mais honorários de 20% para o processo em 1ª Instância, mais 20% no Colégio Recursal (em razão do reconhecimento da litigância de má-fé da Operadora de Telefonia), estimou que a possibilidade de um evento análogo ocorrer era de 1/100.000.
Todavia, se primeiro comentário do Jurista citado não é exatamente correto, o segundo, feito no mesmo dia, na mesma Rede Social, mostra-se absolutamente verdadeiro. Senão vejamos:
“Como sempre digo, não dá para querer ter para sí uma Noruega, mas condenar o resto da humanidade a um Afeganistão. Políticos e juízes dão de ombros para a realidade do povo, achando que tudo bem, pois eles vivem num mundo melhor, mas cedo ou tarde o Afeganistão lhes bate na cara. Que sintam o gosto podre da carne em suas bocas, pois é isso que acontece num país em que a prioridade é proteger empresários nefastos contra cidadãos que são por eles lesados.
Ps. Antes que alguém reclame, óbvio que temos excelentes exceções tanto no judiciário, quanto nos órgãos políticos, mas infelizmente são exceções. Tenho alguns amigos juízes que me orgulham muito, mas infelizmente em um aspecto geral o judiciário, assim como os outros dois poderes, se preocupa mais em proteger o mau empresário do que os cidadãos. A jurisprudência está aí para que todos vejam.”
O comentário é acertadíssimo. De nada adianta os membros do Judiciário trancafiarem-se em suas torres de marfim de proferirem decisões (ao menos neste campo do Direito) totalmente dissonantes da realidade pois (tanto neste tema, quanto em outros) a realidade – mais hora, menos hora – bater-lhes-á à face. Passados quase 30 anos da Constituição Cidadã de I.988 já passamos da undécima hora de transformarmos em realidade prática e efetivamente o quanto disposto no artigo 5º, incisos V e X da Constituição da República.
Fonte: https://www.jusbrasil.com.br